16 abr A rigorosidade ética de um sensei
Desde que foi divulgado o documento “Toyota Way, 2001”, que mostrava como pilares do modelo de gestão da empresa a “Melhoria Contínua” e o “Respeito pelas Pessoas”, muito estudo e intensos debates foram realizados a fim de esclarecer melhor o significado de “Respeito pelas Pessoas” sob a ótica Lean.
Vários livros e artigos, baseados em pesquisas e estudos de caso, nos mostraram que a parte técnica, que normalmente recebe maior atenção, é apenas uma parte do todo, ou seja, o modelo Lean, entendido como uma filosofia de gestão, é muito mais complexo e desafiador do que nos mostra a experiência da aplicação das chamadas “ferramentas Lean”. A frase “People First” utilizada pela Toyota mostra claramente que sua principal estratégia é desenvolver a empresa através do desenvolvimento de seus recursos humanos. Para obter os almejados resultados financeiros precisamos de excelentes processos, e, para melhorar os processos, precisamos melhorar o pessoal, suas competências individuais e suas habilidades em trabalhar em equipe. Se seu pessoal está melhor no que faz, os processos que eles criam não podem ser copiados pela competição. A aprendizagem se transforma em vantagem competitiva porque os outros não conseguem te copiar – eles têm que seguir a mesma curva de aprendizagem. Até aqui acredito que há consenso.
Porém, vejo que essa devida preocupação com a questão do “Respeito pelas Pessoas”, muitas vezes, conduz a empresa a adotar políticas e práticas de gestão que refletem exatamente o oposto do seu verdadeiro significado – aproveito para recomendar a leitura do artigo “Os Quatro Mitos sobre o Princípio do Respeito às Pessoas”, escrito por Jamie Flinchbaugh, disponível na sessão de artigos do site: https://www.lean.org.br/
Como está explícito no próprio artigo acima citado, “Respeito pelas Pessoas” não significa que devemos ser “bonzinhos”. O professor “bonzinho” que não exige muito dos alunos e distribui nota máxima para todos sem observar o princípio básico da meritocracia, o consultor “bonzinho” que não aponta os graves problemas encontrados no gemba, o gestor “bonzinho” que não deve “chamar a atenção” dos seus colaboradores para não magoá-los… São típicos exemplos de profundo desrespeito! Infelizmente, já vi muitas pessoas “boazinhas” mas desonestas, negligentes e “politiqueiras”, em posições de liderança nas empresas. Tais gestores, ao adotarem essas péssimas práticas, aniquilam talentos e geram enorme prejuízo para nossa sociedade – são verdadeiros “agentes do caos”, mas são “bonzinhos”!
No excelente livro “Liderar com respeito: uma prática lean em romance”, fonte de inspiração para esse artigo, os autores citam: “… nosso principal pensamento sobre liderar com respeito é que as pessoas têm direito ao sucesso… É nossa responsabilidade como gerentes apoiá-las para que elas consigam… Quando uma pessoa se sente bem sucedida em seu trabalho, ela se motiva a vir ao trabalho e dar o seu melhor… Liderar com respeito tem a ver com acreditar que cada pessoa pode crescer para fazer melhor o seu trabalho, desde que todos concordem sobre o que é sucesso e determinem os pequenos passos específicos que podemos fazer para melhorar criativamente”. Esses trechos que selecionei proporcionam uma boa ideia do significado de “Respeito pelas Pessoas” sob a ótica lean, mostram que devemos realmente acreditar no potencial das pessoas e proporcionar as condições adequadas para que possam se desenvolver e obter sucesso em seus trabalhos. Como líderes, devemos praticar o princípio de ir ao gemba para entender a situação, perguntar “por quê”, e demonstrar respeito através do engajamento na busca pela solução conjunta dos problemas.
Além disso, como sempre digo aos meus queridos amigos que integram o corpo docente do Núcleo Lean de Pós-graduação da USCS e da UNIFAE, educar (ou desenvolver) também exige desafio e eventuais correções de rumo. É justamente devido ao “Respeito pelas Pessoas” que devemos “desafiá-las”, proporcionar condições que requeiram dedicação, foco e até “superação”, e, também, corrigi-las ou até repreendê-las quando a situação assim exige. As pessoas nunca se desenvolverão na “zona de conforto” e com a crença de que estão “sempre certas” e “não podem ser repreendidas”.
Temos incontáveis exemplos de rigorosos mestres que desenvolviam seus discípulos e deixaram um legado histórico. Invariavelmente, suas histórias mostram a busca pela excelência (ou perfeição), a crença profunda em alguns valores e princípios, momentos de superação e uma postura exemplar. Dentro da comunidade Lean talvez o exemplo mais emblemático seja o próprio Taiichi Ohno que, além de ser considerado “o pai do Sistema Toyota de Produção”, também é considerado um grande sensei. Já li vários relatos que afirmam que o sr. Ohno era realmente muito rigoroso, às vezes até rude, porém, todos afirmam que foi uma enorme boa sorte trabalhar com o sensei Ohno pois tiveram uma oportunidade única de desenvolvimento pessoal e profissional. Será que se o sr. Ohno fosse “bonzinho” com todos, desde o pós-guerra, na década de 40, hoje teríamos a oportunidade de nos desenvolver a partir do conhecimento gerado pela comunidade Lean? Será que existiria o Lean Thinking? A Toyota seria o que é hoje?
Um sensei deve estar pronto para ensinar os princípios e técnicas Lean, oferecer sugestões e críticas, expandir o pensamento de seus alunos, promover insights, criticar as práticas de gerenciamento Lean local, etc., porém, quando as pessoas simplesmente não querem colocar em prática os ensinamentos, então, como última lição para os alunos, cabe ao sensei partir. Como cita o sensei David Mann em seu excelente livro “Liderança lean: ferramentas de gestão para sustentar a cultura lean”: “… O sensei deve ser como qualquer bom consultor, reconhecendo a divisão de responsabilidade entre cliente e conselheiro profissional. Ou seja, o sensei ou consultor é responsável por ensinar, dar conselhos, estimular novas linhas de raciocínio e identificar novas direções. O cliente é sempre responsável pela tomada de decisão, ou seja, “se” e “como” aplicar o conselho do professor. Nessa relação, a única decisão que o sensei toma é se continua a trabalhar com o aluno, com base em como o aluno prossegue com seu comprometimento”.
Seja num ambiente de educação ou numa consultoria Lean, temos que desenvolver uma relação de mestre-discípulo com nossos alunos. Essa profunda relação deve ter a disciplina como base, e o alto comprometimento como pré-requisito. Devemos entender os impactos sociais do nosso trabalho, ou seja, devemos sempre pensar em: “Que tipo de aluno estou formando para a sociedade?”; “Estou, de fato, desenvolvendo esse profissional de forma que ela tenha condições de gerar bons resultados na empresa onde ele trabalha?”; “Estou realmente ajudando essa pessoa em sua jornada de desenvolvimento pessoal?”. Tudo isso, em sua essência, é questão de ética! Mais uma vez o Lean se mostra enganosamente fácil, “Respeito pelas Pessoas” parece simples e maravilhoso, porém, sua aplicação é complexa e desafiadora. Respeitar as pessoas de forma errada, além de arruinar uma jornada Lean, pode inibir o desenvolvimento das pessoas e gerar a perda de talentos – que demonstra, na verdade, profundo desrespeito!